Mushishi - Volume 1 - Resenha
- Lucas Freitas
- 6 de mai.
- 12 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
A intrincada relação do ser humano com a natureza ganha uma nova forma na beleza poética no Volume 1 de Mushishi.

E eis que finalmente chegou a hora de falarmos sobre Mushishi.
Tendo começado a ler essa obra no ano passado, fiquei simplesmente maravilhado com o mangá escrito e desenhada por Yuki Urushibara, e publicado aqui no Brasil pela NewPop.
Em breve, irei falar mais sobre o porquê disso, não precisa se preocupar. Antes, porém, gostaria de apresentar o sumário que vai te ajudar a se guiar pela pequena floresta de palavras e letras que comporá esta resenha:
Com o mapa em mãos, agora podemos prosseguir:
Mushishi na Kodansha, um breve histórico de publicação:

Criada por Yuki Urushibara, Mushishi tem uma história de publicação bem longa, tendo começado como uma one-shot (história única e auto-contida) nas páginas da publicação Monthly Afternoon, da Kodansha, em 25 de janeiro de 1999, com a história intitulada Mushishi, que depois viria a ser conhecida como "A luz das pálpebras" - e que valeu a autora o Prêmio Quatro Estações.
Depois de sua estreia na Monthly, Mushishi começou sua serialização na primeira edição da Afternoon: Seasons Zoukan, em outubro de 1999 (capa ao lado), uma revista voltada para o público seinen - tópico este que já comentamos anteriormente por aqui.
E aqui acho que será importante fazer um pequeno aparte sobre o mercado de mangás no Japão.
Enquanto que aqui, no Brasil, estamos acostumados a comprar nossos mangás em volumes separados, no Japão o padrão de publicação é um pouco diferente. Lá, os mangás são primeiro publicados em grandes revistas com um papel de qualidade bem inferior. Essas revistas, que parecem bastante com listas telefônicas, são feitas para serem consumidas e descartadas, não tendo como intuito a coleção propriamente dita.
Isso virá bem depois, quando uma determinada série alcança um nível de popularidade elevado. Nesse momento, ela é coletada em um volume (o tankoubon), com um papel e um acabamento bem melhores. É desse formato que recebemos os mangás que chegam até aqui.
Ok, fim do aparte.
Com sua casa fixa na Afternoon: Seasons Zoukan, a série continuou a ser publicada até 25 de dezembro de 2002, quando a Zoukan foi encerrada. A partir de então, Mushishi foi transferida novamente para a Monthly Afternoon, onde foi publicada initeruptamente até sua conclusão, em 25 de agosto de 2008.
Desde então, Mushishi tem sido republicada não só em uma série de formatos, mas também em vários países, chegando ao Brasil em 2023 pela NewPop, e é aqui que nossa resenha vai começar.
Mushishi vs. Mushi: Mas afinal, o que é um Mushi?

Uma vez que já falamos sobre a história da publicação, agora vamos esclarecer um tópico bem importante antes de começarmos nossa resenha sobre Mushishi.
Afinal, o que é um mushi?
Então, ainda que no japonês contemporâneo tenhamos um significado para mushi (inseto), em Mushishi, a palavra ganha um novo significado - e um bem próprio à obra. No universo criado por Urushibara, mushis são seres invisíveis e onipresentes, nem plantas nem animais, que permeiam toda a existência. Não sendo inerentemente bons ou maus, lembrando bastante o modo como Shigeru Mizuki trabalhava seus youkais, os mushi são criaturas que vivem à sua própria maneira, não sendo possível classificá-las nos padrões de bom e mau dos humanos. De fato, se possuem algum tipo de preocupação, se é que podemos chamar assim, é com sua sobrevivência. E se estranhos eventos ocorrem quando interagem com os seres humanos, isso não é nada além de obra do mero acaso, não havendo uma intencionalidade maligna em suas ações.
Talvez, numa concepção mais ampla, possamos associar os mushi com os kami como apresentados no xintoísmo, a religião original do Japão. Para melhor exemplificar isso, vou trazer aqui o trecho, traduzido por mim, de uma bela resenha presente no Theanimehub, publicada originalmente em 14 de janeiro de 2017:
Para os espectadores ocidentais, o conceito de "mushi", (seres espirituais que operam fora das regras e restrições do mundo físico) pode parecer estranho caso eles optem por vê-los como fantasmas ou demônios como os mesmos são retratados nas mitologias europeias. Assim como as manifestações sobrenaturais presentes na literatura ocidental, mushi não têm interessem em coisas mundanas como dinheiro ou comida, muito menos estão diretamente correlacionados com conceitos físicos, como energia ou massa, apesar de serem capazes de influenciá-los de formas peculiares. Contudo, para além disso, os mushi não são oniscientes ou sequer malévolos (ou benévolos), antes são apenas representações puramente espirituais da natureza que age segundo seu instinto. Essa parte apresenta uma certa diferenciação do kami tradicional no xintoísmo (cuja representação mais acurada que conheço está no grande shounen de batalha Noragami), uma vez que lá [os kami] são tão falhos quantos os próprios seres humanos - e talvez venha daí o uso do termo mushi (inseto 虫). Mas, as mesmas qualidades com que os kami são apresentados no xintoísmo são atribuídas aos mushi, como o fato de ser inumeráveis, e em diferirem tanto um do outro, seja em comportamento, seja em aparência, que chegam a ter pouca semelhança entre si. Dito isso, eles não se sobrepõem nem desafiam um ao outro, mas antes vivem em harmonia uns com os outros e com o ambiente ao seu redor, definindo aquilo que o xintoísmo apresenta como sendo a pureza espiritual.
No entanto, o xintoísmo influencia bem mais do que apenas no modo como os mushi ocupam o mundo: de fato, as consequências e causas de grandes tragédias presentes na obra também estão de acordo com os valores da religião. Esses valores são, em resumo, paz, harmonia e conformidade com a natureza e com aquilo que se deve ser. Nesse aspecto, os mushi são criaturas moralmente perfeitas que simplesmente agem como devem agir, e os problemas surgem quando há uma intereferência por parte humana, seja ela intencional ou não.
Então, estes são os mushi e, agora que já os conhecemos, que tal começarmos a falar de Mushishi propriamente dito?
Mushishi - Volume 1 - Resenha:

Então, de forma bem resumida, Mushishi nos apresenta as histórias de Ginko, um caçador de mushis. Mas, se você imagina um caçador nos moldes de Hunter x Hunter, ou Solo Leveling, pode parar por aí. De fato, apesar do título, Ginko está muito mais próximo de um médico itinerante do que de um caçador propriamente dito.
Na verdade, talvez a figura mais próxima de Ginko, em termos de comparação, seja o Apotecário de Mononoke, uma vez que ambos compartilham de uma estrutura narrativa bem parecida, ainda que com uma série de diferenças - o que valeu uma definição maravilhosa por parte da apresentadora, cosplayer e atriz Dell em uma conversa. A definição? Esta aqui: "Mushishi é a versão zen de Mononoke".
Mas já vamos chegar nesse ponto.
Uma vez que acompanha as aventuras de um andarilho, as histórias de Mushishi vão seguir uma estrutura narrativa bem parecida - pelo menos no Volume 1 - a saber: Ginko chega em uma determinada vila/aldeia, se depara com alguma situação inusitada, investiga as causas, identifica o mushi e procede com a medicação/cura que resolverá o problema. Essa estrutura garante à série um caráter bem episódico, com as histórias sendo autocontidas, não existindo, necessariamente, um senso de continuidade.
Por isso, vou fazer aqui breves comentários sobre cada narrativa presente no Volume 1 de Mushishi, antes de falar dos aspectos gerais da obra:
O trono verde - Aqui, Ginko visita um garoto que consegue dar vida à mushis a partir de sua escrita. A investigação do Mushishi o leva a descobrir o passado da família do garoto, e a relação peculiar de sua avó com essas criaturas. Assim, a medida que se aprofunda no mistério, somos apresentados a uma história bela, porém triste, sobre família e os sacrifícios que muitas vezes somos levados a fazer por aqueles que amamos.
O chifre macio - Visitando uma vila isolada pela neve, o Mushishi precisa salvar uma criança de um mushi que devora o silêncio, fazendo com que todo um mundo de sons e ruídos passe a incomodar seu hospedeiro - e com potencial de levá-lo à morte caso não seja tratado a tempo. Aqui, temos uma história que se aproxima mais de uma investigação polical, onde Ginko precisa entender não só o modo de agir do mushi, como também o mistério por trás da morte da mãe do garoto, e como os dois casos podem se conectar.
A passagem do travesseiro - Após medicar um homem capaz de prever o futuro, Ginko retorna meses depois para descobrir o que aconteceu com ele, apenas para descobrir que infecção de mushis trouxe consequência terríveis para todo aldeia. No entanto, o poder da previsão é algo bastante sedutor, uma vez que saber do futuro pode ajudar em mais de um sentido. Mas, é claro, certos poderes podem trazer consequências inesperadas. Uma história bem interessante sobre culpa e decisões ruins, e o peso que elas podem trazer.
A luz das pálpebras - Vencedor do grande prêmio Four Seasons, A luz das pálpebras no conta a história de uma jovem que é acometida por um mushi que a faz perceber a luz mesmo de olhos fechados, uma vez que levanta a "outra pálpebra". Como consequência disso, uma dor terrível acomete a jovem toda vez que ela entra em contato com a luz, motivo pelo qual ela é mantida em uma casa fechada, isolada dos demais. No entanto, apesar de não ver, ela consegue "enxergar o mundo como ele é, e até mesmo enxergar os mushis. É em uma dessas visões que ela se encontra com Ginko que lhe avisa para tomar cuidado com o que vê, pois, como em todos os casos, podem haver consequências para sua exploração
O pântano viajante - Particularmente, esta é uma das minhas favoritas. Viajando pelo interior, o mushishi se depara com um pântano que está seguindo sua viagem rumo ao mar. Mas, para sua supresa, uma jovem parece estar acompanhando o corpo de água. Quem é essa jovem, e o que ela faz seguindo o pântano é o mistério da vez, o que leva Ginko a uma jornada para salvá-la.

A montanha dorme - Aqui, Ginko encontra um outro mushishi que decidiu fixar residência próximo a uma montanha, para assim ajudar os habitantes da vila mais próxima. No entanto, logo percebe que há algo de errado. Cansado de seu trabalho, o mushishi tenta passar seu manto para outra pessoa, ainda que essa decisão possa trazer consequências graves para si mesmo.
O mar de tinta - A primeira história que transcorre quase que inteiramente sem a presença de Ginko, ou onde o personagem não tem muita importância. Nela, acompanhamos a história de uma jovem que precisa seguir com o legado de sua família, realizando um ritual para manter um poderoso mushi adormecido. Aqui, a história é muito mais sobre a história da garota e sua relação curiosa com essas criaturas do que sobre uma investigação propriamente dita.
O enxame que consome o orvalho - Convidado para uma ilha isolada por um jovem desesperado, Ginko precisa descobrir a verdade por trás de um fenômeno peculiar: todas os dias uma jovem, conhecida como deus da ilha, envelhece e morre junto com o sol, apenas para renascer no dia seguinte. O que se segue é a descoberta de um curioso mushi, e uma reflexão maravilhosa sobre a natureza humana - e outra das minhas histórias favoritas.
A chuva vem, o arco-íris se ergue - Uma comovente história de pai e filho. Tendo tocado um arco-íris, um homem passa a ter uma obsessão implacável por persegui-lo, chegando até mesmo a fugir de casa em períodos de chuva para procurar esses fenômenos. Sua "loucura" é passada para seu filho, que busca entender o significado da vida e fascínio de seu pai. Nessa jornada, ele se depara com o Mushishi, que, mais uma vez, se torna mais um coadjuvante do que um agente ativo dessa narrativa.
Esporos de algodão - Por fim, a história que mais se aproxima de uma história de terror - e outra das minhas favoritas. Visitando uma família para ajudar com uma criança doente, Ginko percebe que o filho doente do casal é, na verdade, um mushi, assim como todos os seus irmãos. Diferente dos demais mushis, porém, esse fará o que for preciso para garantir sua sobrevivência, lembrando bastante obras como o livro A Cidade dos Amaldiçoados (1957) de John Wyndham e que baseou o filme de 1995 de John Carpenter.
Por mais que a estrutura da narrativa permaneça parecida ao longo das aventuras, isso não significa que as histórias de Mushishi sejam repetitivas. Pelo contrário. Por mais que lidem com a relação entre ser humano e natureza/mundo, cada história traz seu próprio peso e sabor em experiências que se provam únicas.
Assim, enquanto histórias como O enxame que consome o orvalho possam apresentar uma perspectiva belíssima sobre a ansiedade e nosso instinto de fuga/retorno para um lugar mais tranquilo, outras, como A chuva vem, o arco-íris se ergue, já se apresentam como uma narrativa mais intimista a respeito de um homem que busca entender um pouco mais sobre seu próprio pai - e assim, no processo, descobrir mais sobre si mesmo. Em comum, essas histórias irão apenas apresentar o grande dilema do ser humano, em suas ambições, medos, alegrias e tristezas, sendo uma verdadeira aula de contação de histórias por parte de Yuki Urushibara.
De fato, por mais que tenham um protagonista na figura de Ginko, o Mushishi que dá título à obra, o mesmo atua mais com um personagem secundário, sendo, muitas vezes, apenas o modo pelo qual a história encontra para se desenvolver e se encerrar, uma vez que são seus conhecimentos médicos que trazem um final para o dilema provocado pela incursão dos mushis no mundo humano, ou seria o contrário?
Porque, ainda que causem problemas para os humanos, não há uma maldade ou apetite de destruição nos mushis. De fato, apenas em uma história (Esporos de algodão), as criaturas assumem algo próximo ao que poderíamos considerar como perversidade - ainda que seja uma técnica necessária para sua própria preservação e propagação. Assim, estando além do bem e do mal, as criaturas ocupam seu próprio nicho ecológico, tendo a mesma importância para a existência quanto os próprios seres humanos. Como consequência, Ginko não combate os mushis, mas antes, cuida para que o equilíbrio entre o mundo deles e dos humanos seja mantido, com a mesma perspectiva clínica de um médico que trata um paciente.
Assim, antes de um antagonismo claro e definido, a relação entre mushis e humanos e mais uma dinâmica de compartilhamento, um equilíbrio de forças através do qual a vida depende para ser vivida em sua plenitude - de onde, mais uma vez, trago o enxerto de texto do Theanimehub, sobre a obra e sua relação com o modo de ver o mundo xintoísta. Ao tomar esse rumo, Mushishi consegue, ao mesmo tempo, apresentar ao leitor um pouco daquele senso de maravilhamento, de deslumbramento, que muitas vezes sentimos ao ver um portento da natureza, como uma bela floresta ou um vasto córrego, ao mesmo tempo em que situa suas histórias em um universo tão demasiadamente humano que quase conseguimos ver a nós mesmos nesse reflexo.
Por fim, mas não menos importante, é preciso salientar o belo trabalho da arte de Urushibara. Com um traço elegante, a mangaká consegue dar peso e atmosfera aos seus cenários, dando dimensão às suas histórias, e reforçando aquele sentimento de maravilhamento perante a natureza que mencionei acima. De fato, suas florestas são sempre vistosas e cheias de vida e mistério, e seus cenários de neve, assim como as montanhas, são carregados por uma grandiosidade e imponência majestosas. Da mesma forma, ao apresentar o mundo de Mushishi em um traço bem realista, evitando muitos dos efeitos e possibilidades mais cartunescas do mangá, a autora reforça o efeito de estranheza que os mushis e suas repercussões provocam quando surgem no mundo dos humanos, dando ao leitor uma perspectiva de entrar em um outro mundo, onde o real e o fantástico caminham lado a lado.
No que diz respeito à edição brasileira, acredito que existam duas considerações que precisem ser feitas: primeiro, um elogio à tradução do Volume 1 de Mushishi, que conseguiu manter o ritmo e o tom da série, casando perfeitamente com a obra. Um outro ponto bem interessante são as sessões com comentários da autora, onde a mesma comenta um pouco não só sobre as histórias e o processo de produção de Mushishi, mas também compartilha causos de sua vida, e as histórias peculiares que rondam sua família - e que podem muito bem ter inspirado a obra que temos em mãos - algo que enriquece ainda mais a experiência de leitura.
Então, se existe um mangá que eu facilmente recomendaria como a leitura do ano, certamente, esse mangá é Mushishi.

Referências:
Instagram - Perfil @mangagrail
NewPOP - Mushishi - Volume 1
Omelete - Guia otaku: tudo sobre mangá
Reddit - Does anyone have a copy of the original oneshot?
The Anime Hub - Mushishi analysis - part 1: a shinto world
Wikipedia - Mushishi (artigo original em inglês)
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