Duas-Caras em dois tempos: O papel do tempo na narrativa
- Lucas Freitas

- 28 de nov.
- 11 min de leitura
Em mais um artigo sobre narrativa, vamos discutir o papel do tempo usando como base um episódio da série Batman: O Cruzado Encapuzado e sua construção do Duas-Caras

E não sem um certo atraso, consegui terminar a primeira temporada de Batman: O Cruzado Encapuzado, "nova série" animada do personagem produzida pelo lendário Bruce Timm, e que situa o Cavaleiro das Trevas em uma narrativa de época, com um clima bem mais noir do que já vimos até então. Mas antes de falar sobre o tema do artigo em si (e sim, será mais um texto com o Duas-Caras), acho que preciso fazer uma breve introdução sobre a série em si. E, para. te ajudar a se guiar, segue abaixo nosso já tradicional sumário:
Agora, sem mais delongas, para o artigo.
Antes do Duas-Caras, Batman - O Cruzado Encapuzado:
Por mais que tenha seus percalços, muito deles provocado pela questão de formato e de recursos, tenho que dizer que gostei bastante da série. Além de trabalhar um Batman jovem, ainda no começo de carreira e completamente absorvido em seu próprio mundo, O Cruzado Encapuzado também trabalha um aspecto relativamente pouco abordado nas animações do personagem até então: os policiais de Gotham. Por mais que conheçamos nomes como Gordon ou Montoya, o Departamento de Polícia de Gotham City sempre foi um elemento pouco aproveitado nas animações - e filmes - do personagem, algo que a série tenta reverter. Assim, os policiais ganham um bom destaque, com seus dramas e investigações assumindo um maior foco na narrativa.

Ainda assim, como eu disse, não é uma série sem seus problemas.
Mas vamos por partes, sim?
Por mais que se tente evitar comparações com a famosa Série Animada da década de 1990, é impossível não terminar esbarrando nela ao falarmos sobre O Cruzado Encapuzado. Afinal, sob muitos aspectos, foi essa série que não só apresentou o Batman para toda uma geração, como também foi ela a responsável por aquela que é a representação definitiva do personagem, o que a torna o padrão ouro do Cavaleiro das Trevas. Ainda assim, uma comparação, nesse sentido, seria bem injusta.
Um exemplo bem claro pode ser visto no peso do orçamento e dos recursos que a nova série recebeu. Mas aqui vamos precisar de um pequeno contexto:
Inicialmente planejada como uma série para o streaming da Warner, o HBO+, e o Cartoon Network (isso ainda em 2021), a história do Cruzado Encapuzado é bem tumultuada. Em 2022, a Warner desistiu de exibi-la em seu streaming, oferecendo a série em produção para outros players, como Netflix, AppleTv e Hulu, antes de finalmente ir para a Amazon, em 2023. Essa dança das cadeiras já é, por si só um sinal de problemas para qualquer equipe de produção, visto que lhe falta uma segurança de que o projeto irá efetivamente à frente. E por mais que tenham encontrado um canal no Prime, e já com direito à segunda temporada, esses anos iniciais certamente marcaram a equipe, que, além disso, precisou contar com recursos bem limitados na hora de realizar sua visão.
Essa dança das cadeiras corporativa é algo que se traduz na animação. Por mais que a série tenha ganho bastante em liberdade, não precisando, por exemplo, ter que lidar com regras como aquelas impostas pela Fox, emissora original da Série Animada (vide imagem abaixo), ela perde um pouco na fluidez e acabamento da animação. Não só isso, imagino que o status ambíguo da realização da série afetou também sua extensão, que se resume a 10 episódios - e talvez aqui esteja o maior problema do Cruzado Encapuzado.

Aqui a lógica é bem simples: quanto menos episódios você tem em uma temporada, menos tempo você terá para desenvolver suas ideias e personagens. Por mais que O Cruzado Encapuzado opte por um formato de série com episódios auto-contidos (onde as tramas principais tendem a se resolver no próprio episódio), existem subtramas que vão acompanhando os personagens ao longo da Primeira Temporada e, dentre elas, temos a saga de Harvey Dent.
Aparecendo desde o primeiro episódio, o promotor público segue o arco que já é tradicional na trajetória do mesmo: desejando mudar o cenário de Gotham, Dent se candidata a prefeito. Nesse meio tempo, porém, seus caminhos cruzam com Rupert Thorne, chefão da máfia, o que vai terminar com a transformação do mesmo no Duas-Caras.
Apesar de já conhecermos essa história e já sabermos aonde ela termina, em O Cruzado Encapuzado ela não tem o mesmo impacto que o de outras produções, e para entender um pouco melhor o porquê disso, vou tentar traçar um paralelo entre a origem do Duas-Caras na Série Animada e de sua contrapartida, e discutir como o tempo foi um fator decisivo no sucesso de uma e na estranheza da outra. Vamos lá?
Duas-Caras na Série Animada:

Apesar da origem do Duas-Caras só ser contada entre os episódios 10 e 11, a presença de Harvey Dent se faz sentir desde os primeiros episódios da série. Ali, o promotor público é construído como melhor amigo de Bruce Wayne, além de uma figura proeminente no mundo jurídico de Gotham. Assim, a série vai construindo a personagem de Dent, dando, inclusive, um bom destaque em episódios como no da Hera Venenosa.
Ainda assim, será a partir dos episódios duplos que a Série Animada realmente vai mergulhar no personagem. Já no Episódio 10, intitulado Duas-Caras, Parte 1, somos apresentados a uma sessão de terapia onde Harvey tenta lidar com seu lado mais agressivo e violento. Ao final da sessão, a psiquiatra recomenda que o promotor tira um recesso para se tratar, sob o risco do estresse da campanha de reeleição provocar um surto psicótico. O promotor, claro, se recusa, e segue com sua campanha.
Como plataforma para sua eleição, Dent tem promovido um cerco pesado às atividade sde Rupert Thorne, chefão da máfia local.A perseguição intensa tem irritado o criminoso que, para tentar aplacar o promotor, procura por algum podre que possa ser utilizado como trunfo.É então que ele descobre que o promotor está frequentando o psiquiatra e, a partir daí, é um pulo até que ele conseguia o prontuário do mesmo.
Com essa carta na manga, Thorne sequestra Dent para uma de suas fábricas e, ali, tenta chantagear o promotor. No entanto, devido ao estresse do processo, a outra personalidade de Harvey toma conta e entra em confronto com o mafioso. Nesse momento, o Batman surge para resgatar seu amigo e, no confronto que se segue, ocorre o acidente que desfigura o rosto de Harvey Dent.
Levado para o hospital às pressas, o promotor é internado e é só ao ser visitado por sua noiva, já no final do episódio, que temos o primeiro vislumbre daquele que será conhecido como Duas-Caras

A segunda parte da história, traz Harvey, agora como Duas-Caras, em sua jornada de vingança contra Thorne, atacando uma série de negócios do chefão do crime até o momento em que este decide por um fim na situação, sequestrando a noiva do promotor. No combate que se segue, o Batman intervém, conseguindo salvar não só o promotor, que é conduzido para o Arkham, como também sua noiva.
E assim, com um tom bem agridoce, termina essa introdução ao personagem na Série Animada.
Duas-Caras em O Cruzado Encapuzado:
Pois bem, aqui as coisas ficam um pouco mais diferenciadas na narrativa do Duas-Caras, ainda que certos padrões permaneçam.
Aparecendo desde o Episódio 1, o promotor público Harvey Dent só começa a ter algum destaque um pouco mais à frente, quando inicia sua campanha para prefeitura de Gotham. Mas já nessas primeiras aparições temos uma grande mudança com relação ao personagem.

Pois, longe do modelo de justiça geralmente associado ao personagem, aqui, Harvey já possuí, desde o início, um caráter corrupto, trabalhando com um sistema de dois pesos e duas medidas (piada não intencional), punindo com rigor absoluto os criminosos de baixo escalão, mas sendo bem mais leniente com os criminosos mais endinheirados - sendo essa dinâmica de classes um dos pontos da série.
Ainda assim, o desejo por justiça, ainda que enviesada, permanece, sendo esse o motivo que leva o promotor a se candidatar à prefeitura de Gotham. Esse projeto parece fadado ao fracasso, principalmente depois da intervenção do Cavalheiro Fantasma, no episódio 6, que, durante um assalto a um trem, destrói a imagem de Dent como um "homem do povo".
Será esse o motivo que fará com que Harvey aceite a ajuda de Rupert Thorne, chefão da máfia para assim conseguir uma chance de vitória. Além do auxílio dos sindicatos e dos jornais controlados por ele, o criminoso também fornece dinheiro para a campanha de Dent, pedindo um favor em troca: a absolvição de um dos seus protegidos, responsável por desviar milhões de fundos de pensão. Dividido, Dent não sabe como agir até que, por fim, ele decide seguir seu senso de justiça e condena o réu, em um momento de tomada de consciência. No entanto, esse ato não ficará impune e, como represália, acontece o atentado que transforma o promotor público no Duas-Caras.

Desse ponto em diante, vamos acompanhando o processo de queda do promotor que, perdendo a eleição, se isola em seu apartamento, não conseguindo lidar com o trauma e a deformação. Quando Bruce Wayne , imaginando que o caso tem conexão com a máfia, tenta forçar Dent a falar o que sabe, levando-o para um jantar, o quadro clínico do promotor piora, levando-o a assumir de vez a persona de Duas-Caras e partir em sua jornada de vingança, que é parcialmente realizada.
Sendo detido pouco depois de tentar executar Thorne, Dent é convencido a testemunhar contra o chefão do crime - e assim tentar obter sua redenção - por Bárbara Gordon, que aqui é uma advogada de defesa. Essa decisão colocará o ex-promotor no centro de uma caçada humana que envolverá não só a máfia, como também parte da força policial corrupta de Gotham. Nesse embate, apesar dos melhores esforços do Batman e do trio formado por Bárbara, o Comissário e Renne Montoya, Harvey é assassinado por um policial corrupto, encerrando, assim a sua história.
Duas-Caras em Dois Tempos:
Peço desculpas por esses resumos porcos, principalmente porque eles não deixam transparecer um fator bem importante nesses desenvolvimentos da história de origem do Duas-Caras:o tempo.
Veja bem, toda história precisa de tempo para poder apresentar seus temas, personagens e deixá-los se desenvolver. Não menos importante, histórias precisam de tempo para fazer com que o leitor/espectador crie um vínculo com os mesmos. É esse vínculo que faz com que as pessoas que consomem uma determina obra passem a se importar com os que acontece com um determinado personagem. Se sentimos sua dor, se ficamos tristes com seu destino ou felizes com seu sucesso, isso é o sinal de que um vínculo foi formado.
Isso não quer dizer que toda história precise do mesmo tempo. Um suspense, por exemplo, precisará de muito mais tempo para se desenrolar e causar seu efeito do que uma história de aventura, que, por sua vez, tende a ter um tempo muito mais curto entre os eventos, justamente porque muito de sua ênfase vai recair na sequência de ações e acontecimentos.
Ainda assim, uma história como a proposta para o Duas-Caras não segue esse modelo acima. Na verdade, ela é o tipo de narrativa que pede pelo tipo de vínculo que gera conexão com uma obra, e é mais ou menos aqui que os conseguimos ver a diferença entre a Série Animada e o Cruzado Encapuzado.

Apesar de ambas introduzirem Harvey Dent desde o princípio, há uma diferença no modo como o personagem é apresentado. Na Série Animada, vemos o promotor desde os primeiros episódios, e acompanhamos cenas e detalhes de sua vida, seja em sua amizade com Bruce Wayne, seja através dos projetos que vem a elaborar ou mesmos suas desventuras com o submundo de Gotham. De fato, somos apresentados ao personagem e acompanhamos sua trajetória até o momento final, quando o mesmo sofre seu acidente e sua queda definitiva no mundo do crime.
Enquanto isso, no Cruzado Encapuzado, temos um efeito ligeiramente diferente. Aqui, Dent termina sendo mais introduzido do que apresentado. Devido ao tempo bem mais enxuto que a série dispõe (apenas 10 episódios), não podemos contar com o mesmo tipo de desenvolvimento da sua antecessora.
E aqui, não entro no mérito da abordagem diferenciada que a nova série dá ao personagem, visto que o problema não vem dela. Lembre-se estamos falando sobre a questão de tempo, não de perspectiva.
Afinal, sendo uma nova leitura, com uma nova estética e uma nova visão de Gotham e da mitologia do Batman, essa nova versão do Duas-Caras funciona bem para o que a série se propõe. Subvertendo a tradição ao estabelecer o promotor como uma figura corrupta desde o princípio, a história mina em certa medida o elemento trágico da origem do Duas-Caras. Afinal, a tônica da história do personagem ganha sua força por ser uma história de queda. Um promotor justo que, absolutamente dedicado ao seu trabalho, termina cruzando linhas que não deveriam ser cruzadas, até o momento em que vira ele mesmo um dos maiores nomes do crime de sua cidade.

Em O Cruzado de Capa, porém, essa versão já falha de Harvey Dent já cede ao peso de seu padrão duplo de justiça, corrompendo-se antes mesmo do acidente e de sua jornada por vingança, e tentando, ao fim, uma redenção que não lhe é permitida. E é isso que dá à essa versão do personagem sua própria força. Uma vez que toda a ambientação da série, assim como do próprio Batman muda, essa versão do Duas-Caras traça um paralelo ideal com esse Cavaleiro das Trevas mais auto absorvido e punitivo, sendo um alerta para os rumos que o personagem pode tomar caso permaneça em seus rumos.
Novamente, a questão principal aqui é o tempo.
Como disse acima, o fato da produção ter um espaço tão curto para se desenvolver, termina minando um pouco do que seria o desenvolvimento desse arco. Sim, vemos Harvey tomar suas decisões dúbias, vemos ele tentar comprar as eleições e o vemos se tornar no Duas-Caras. No entanto, é tudo tão corrido, que não temos o tempo de acompanhar o personagem nessa trajetória ou de sentir o peso dessas decisões. De fato, não chegamos sequer a conhecer Dent ou acompanhar sua história, antes, ela nos é entregue e apenas vamos observando tudo se desenrolar. Até mesmo sua grande queda gera esse efeito - e talvez seja aqui que a comparação com a Série Animada pese mais.
Se ali, acompanhamos toda a crise do promotor até o seu acidente, entendendo um pouco seus traumas e o peso que essa dupla personalidade traz para ele, em O Cruzado Encapuzado não temos esse mesmo efeito. Ainda que mude o ponto da história, a série não permite tempo para que nos conectemos com esse novo personagem, com sua transformação e queda ocorrendo de modo bem mais corrido e sem tanta profundidade que possa nos dar uma base de vínculo. Existem momentos, é verdade, em que a série tenta fazer isso, seja com o Duas-Caras demonstrando dúvida (aqui sendo expressas pelo lado destruído do seu rosto), seja com a dor e sofrimento que Dent mostra em suas aparições pós-acidente. Contudo, mesmo essas passagens são logo deixadas de lado para a continuação do episódio, de modo que os temas e desenvolvimentos terminam sub-aproveitados, visto que a série precisa entrar no formato do episódio auto contido e na temporada de 10 episódios.

E é isso o que considero ser o principal problema quando uma obra não dá ao tempo o seu devido respeito: ao apressar a narrativa, ao não permitir que ela tenha o tempo para desenvolver seus temas e personagens, muito da força da história se perde, por melhor que sejam as ideias ali envolvidas.
E é exatamente esse o caso de O Cruzado Encapuzado, e o arco do Duas-Caras é um exemplo bem claro disso. Por mais que tenha boas ideias, apesar de ter personagens e temas bem interessantes, a execução corrida faz com que a série fique presa em algum ponto entre o bom e ok, nunca chegando a realizar todo o seu potencial.
Afinal, não basta que a arma de Tchekhov apareça, ela precisa de tempo para ser carregada.
Mas agora, deixo a questão para você. O que achou de O Cruzado Encapuzado? Concorda com a questão do tempo? Comenta e vamos conversar um pouco mais sobre essa história.
Referências:
Hollywood Reporter - Batman Animated Series from J.J. Abrams and Matt Reeves Coming to HBO Max
Hollywood Reporter - ‘Batman: Caped Crusader’ Moves to Amazon With Two-Season Order
Screenrant - How 'Batman: The Animated Series' Censorship Accidentally Helped The Show
Variety - ‘Batman: Caped Crusader’ Animated Series From Bruce Timm, J.J. Abrams, Matt Reeves Not Moving Forward at HBO Max, Will Be Shopped Elsewhere



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