A Saga de Eternidade - Resenha:
- Lucas Freitas

- 18 de ago.
- 9 min de leitura
Em A Saga da Eternidade, o Dr. Estranho enfrenta um de seus maiores desafios, em uma história que termina sendo um marco na história do personagem, e também da parceria de Steve Ditko e Stan Lee.

Olá!
Então, como estou andando um pouco enrolado recentemente com uma série de textos, talvez eu tenha que dar uma pequena desacelerada por aqui na Galeria. Acredito que você já pode ter percebido pelo andar de Junho por aqui. Isso não significa que vou parar de escrever, apenas que vou precisar dar uma diminuída no ritmo de lançamento de novos artigos.
Mas, para não te deixar sem sua dose de artigos, decidi resgatar uma produção mais antiga, ainda no tempo da Sala Reclusa, onde fiz uma resenha sobre A Saga de Eternidade, um dos grandes arcos do Dr. Estranho, e quiçá uma das melhores histórias produzidas pela dupla Ditko-Lee em sua passagem pelo personagem.
Uma vez que já faz algum tempo desde que esse texto saiu, fiz uma pequena revisão para atualizar e corrigir alguns erros, adicionar referências e mudar uma coisa aqui e ali, mas sem alterar muito o conteúdo da resenha. Lembrando que você pode conferir a primeira versão do texto lá no blog.
Para te guiar ao longo do texto, segue aqui um pequeno sumário
Agora, podemos começar o texto. Boa leitura = )
Resenha: Dr. Estranho - A Saga de Eternidade:
Uma breve introdução ao Dr. Estranho e seu contexto antes da Saga de Eternidade:
Criado em 1963, tendo como inspirações Chadu, O Mágico - um programa de rádio de 1930 - e o próprio Vincent Price (de quem, além da aparência, herdou o seu nome do meio) o Dr. Estranho fez sua estreia nas páginas da edição 110 da revista Strange Tales - na época estrelada pelo Tocha Humana. Uma das "poucas" crias da parceria entre Stan Lee e Steve Ditko para a Marvel, o Mestre das Artes Místicas foi, desde sua criação, um personagem sui generis no reino das histórias em quadrinhos. Não tanto por sua natureza - um mago em um universo de combates do crime fantasiados - mas por conta da abordagem com que foi utilizada pela dupla.

Na arte, Ditko apresentava ao leitor e ao mundo um herói franzino e de aspecto completamente ordinário - nos mesmo moldes do seu Homem-Aranha - em franco contraste com a arte mais dinâmica e "heroica" de outro grande nome da casa, Jack Kirby. Ao mesmo tempo, criava visuais e conceitos icônicos, como é o caso de vilões como Pesadelo, criaturas como os Acéfalos e até mesmo Dormammu, aquele que viria a se tornar o principal inimigo do Mago Supremo.
Nada disso, porém, chegava a se comparar com seu trabalho ao retratar novas dimensões ou mesmo efeitos mágicos. Se nos encantos e feitiços do Mestre das Artes Místicas poderíamos ver certas influências da art nouveau, como seria o caso das Faixas Escarlates de Cyttorak, é no próprio movimento psicodélico dos anos 60 a quem Ditko recorrerá para poder retratar seus novos mundos e dimensões, aproximando a viagem interdimensionais à experiências alucinógenas, alçando, com isso uma beleza e estranheza ímpares em seu trabalho. Algo único na época, ainda hoje a arte de Ditko consegue se manter deslumbrante e vívida, arrebatadora, até, ao mesmo tempo em infunde uma aura de mistério em cada um dos seus quadros.

Mais do que ser um divisor de águas no tocante à arte dos quadrinhos, é importante lembrar que foi o período de Ditko à frente do título que definiu aquilo que seria a identidade visual do universo do Dr. Estranho pelos anos que viriam - algo, por exemplo que não viriam a acontecer com o Homem-Aranha, por exemplo. Pois, ainda que seus designs de personagens permanecerem quase inalterados, artistas como John Romita Sr. (de quem já falamos aqui), Ross Andru e Gil Kane vão exercer suas próprias influências no Amigão da Vizinhança, e talvez seja a mão de Romita à mais lembrada quando pensamos no Escalador de Paredes.
Acompanhando a arte "viajadona" de Ditko, o texto de Lee, e também do próprio Ditko, criou aquilo que seria um outro elemento de extrema importância para o Dr. Estranho: uma mitologia própria e coesa. Apresentados no decorrer das aventuras do mago, objetos - como o Olho de Agamotto ou o Livro do Vishanti - invocações - Hostes de Hoggoth ou as já citadas Faixas de Cytorak - lugares - a Dimensão Negra ou o Reino do Pesadelo - e as próprias entidades que os habitavam eram elementos que, ao mesmo tempo em que serviam ao desenvolvimento do arco da narrativa, terminava por agregar valor às histórias, criando uma mitologia coesa e bem estruturada que dava dimensão e profundidade ao universo do feiticeiro, de modo parecido, por exemplo, com o que havia sido feito pelo escritor H.P.Lovecraft (1890-1937), e amigos, nos seus "mitos de Cthulhu" ou como J.R.R.Tolkien (1892-1973) no universo da Terra-Média.

Numa época de grande efervescência cultura, em que a contracultura começava ganhar força, ao mesmo tempo em que o Ocidente começava a se abrir para a religiosidade oriental e às conceitos esotéricos como dimensões alternativas e estados alterados de consciência, não é de se admirar que a criação da dupla, seja por sua arte psicodélica, seja pela narrativa, tenha angariado uma quantidade grande de fãs e admiradores, não apenas entre seu público alvo, mas também no interior de universidades e dentro do movimento hippie. Para muitos, até, o personagem pode ser considerado como uma das grandes influências para o desenvolvimento desse segmento mais místico/psicodélico que caracterizaram tanto os anos 60 - e tudo isso antes da chegada de autores como Steve Englehart, que levaria o título para novos patamares de "viagens alucinógenas".
Mas mesmo num período marcado por ideias brilhantes e narrativas inovadoras, existe, dentro da fase inicial do Mestre das Artes Místicas, uma narrativa que consegue se destacar, não apenas das histórias anteriores do herói, mas de todos os demais quadrinhos de super heróis feitos até o momento. Essa história, chamada A Saga de Eternidade, é o motivo do post de hoje.
A Saga de Eternidade propriamente dita:

Tendo início em março de 1965, nas páginas da edição 130 da supracitada Strange Tales, A Saga de Eternidade começa de uma maneira, aparentemente, comum. Na página de abertura da história do Mestre das Artes Místicas, o Barão Mordo, arqui-inimigo jurado do feiticeiro, faz uma aliança com Dormammu, o Senhor da Dimensão Negra. Juntos, planejam não só a destruição do seu inimigo jurado, como também a do seu mentor, o Ancião. Uma vez que se encontra impedido de atacar diretamente a Terra ou o Mestre do Misticismo, Dormammu transfere parte de seus poderes para Mordo que, assim, poderá finalmente destruir seu inimigo mortal. Na luta que se segue, o Ancião é gravemente ferido, forçando o Dr. Estranho a fugir com ele em busca de auxílio, ao mesmo tempo em que Mordo convoca todos os praticantes de magia negra da Terra para caçar o mago fugitivo. Acuado, o feiticeiro parte pelo mundo num desesperado jogo de gato e rato, procurando entender o significado do nome Eternidade, sussurrado por seu mentor enfermo.
E assim começa um arco que irá se estende por 17 edições da Strange Tales, se encerrando na edição 146, em julho de 1966. E isso, por si só, já é algo digno de nota.
Numa época em que as histórias em quadrinhos tendiam a ser aventuras bem auto contidas, estendendo-se, quando muito, em duas ou três partes, A Saga de Eternidade, quebra por completo esse padrão, se estendendo por 17 edições num total de 187 páginas, aproximadamente. Para fins de comparação, acredito que a única outra história que conseguiu superar a extensão da Saga foi o arco Monster Society of Evil, do Capitão Marvel/Shazam, que durou um total de 24 edições publicadas ao longo de 2 anos (1943-1945). Ainda assim, é preciso lembrar que o arco do Capitão aconteceu na Era de Ouro dos Quadrinhos, um período em que o gênero de super-heróis está em alta. Já a saga do Dr. Estranho, por sua vez, acontece em um período onde o gênero estava começando a se reestruturar.

Agora, mais do que o ineditismo e a ousadia da história, surpreende o quão consistente ela consegue ser. De fato, a A Saga de Eternidade é, em sua maior parte, dominada por um senso de urgência e tensão - oriundo tanto da ameaça de Mordo quanto pelo estado de saúde do Ancião - que vai crescendo a cada capítulo, à medida em que apresenta perseguições, duelos místicos e viagens interdimensionais até o grande clímax da história: o encontro do protagonista com Eternidade, a personificação do universo - e um dos mais incríveis designs elaborados por Ditko. Não só isso, essa tensão é construída com maestria, de modo que, por mais que seja sempre crescente, consegue dar ao Dr. Estranho uma série de pequenas vitórias, oferecendo ao leitor um tempo de respiro e de relaxamento antes de engrenar novamente no senso de urgência. Não só isso, quase todo capítulo da história funciona para propelir à mesma adiante, quase não havendo capítulos perdidos ou que atrasem a narrativa.
Isso quer dizer que temos aqui uma história perfeita? Não.
Por mais que mantenha seu "pique" por boa parte de sua extensão, é preciso admitir que A Saga de Eternidade sofre um pouco perto do seu final - especificamente nas últimas quatro edições - basicamente por dois motivos.
O primeiro, está na barriga que o arco apresenta nessa reta final. Apesar de se "resolver" na edição 142, a série sofre com duas trocas de roteiristas, sendo a primeira já na edição 143 (Roy Thomas) e a segunda já na 145 (Dennis O´Neil). Essa sequência de mudanças em tão pouco tempo afeta bastante a narrativa, que ora parece querer se estender demais, ora assume basicamente a função de um filler (a edição 145, com o esquecível Sr.Rasputin) até sua conclusão no número 146. De fato, a mudança de rumo é bem perceptível, com o Dr. Estranho precisando lidar primeiro com os discípulos de Mordo para, em seguida, voltar a lidar com as maquinações de Dormammu. Da mesma forma, é igualmente perceptível quando a história muda novamente de rumo, com as linhas sendo interrompidas abruptamente para conduzir ao duelo final entre Dormammu e Eternidade.

E é justamente isso que irá nos levar para o segundo ponto.
Esse pequeno desvio mostra como a série ainda não havia se recuperado da "ressaca" do clímax anterior - o confronto entre Estranho e seus Dormammu. E aqui acontece algo bem curioso. Apesar de ser um desvio curto, essa extensão consegue ser longa o suficiente para afetar um pouco o impacto e do peso que a nova e definitiva conclusão deveria ter, visto que, por mais que não tenhamos tido o tempo de respirar, tivemos tempo o suficiente para tentar, e isso quebra o ritmo até então impecável da Saga.
Ainda assim, admito que, diante da história apresentada, isso não chega nem perto de tirar o mérito da narrativa em si.
E, mesmo sendo esse o caso, a arte de Ditko por si só já seria motivo o suficiente para salvar toda A Saga de Eternidade. Se superando a cada edição, o artista desenha com igual maestria tanto ambientes comuns, como cidades e templos, quanto os incomuns, dimensões e seus habitantes, imprimindo, em ambos os tipos de cenários, uma aura de assombro e fascínio que consegue transformar até a mais comuns das visões em coisas interessantes e dignas de respeito.
No entanto, é no incomum que podemos dizer, sem medo de exagero, que aqui Ditko chega no ápice de sua arte com o Dr. Estranho. Surgindo sempre com ideias deslumbrantes. A cada edição, o artista consegue se superar, surgindo sempre com ideias cada vez mais impressionantes, seja para as dimensões em si, seja para seus habitantes e suas moradias. Sobre esse último tópico, podemos destacar, entre as crias desse arco, Eternidade - a personificação mística do próprio Universo - e a dimensão do Demônio das Máscara, adornada por gigantescos pilares que ostentam os rostos roubados das incontáveis vítimas da criatura. Em um tom tão estranho e peculiar que praticamente grita o nome de Ditko a cada página.

E uma vez que estamos nesse tópico, é impossível não mencionar que, encerrando a Saga de Eternidade com chave de ouro, temos aquele que talvez seja um dos mais incríveis trabalhos de Ditko: o cataclísmico embate entre Dormammu e Eternidade. Tão grandiosa é a escala de poder demonstrada nessa batalha que abala - e destrói - mundos inteiros, numa época em que tais coisas ainda conseguiam ser impactantes. Mais do que "apenas" o encerramento da Saga, esse espetáculo final de caos e loucura marca também a despedida do próprio Ditko do personagem que ajudara a criar e moldar, um verdadeiro canto do cisne para um arco que poderia também ser considerado a obra prima da dupla com o personagem, numa história que, ainda hoje, consegue se manter incrivelmente relevante e fresca.
Enfim, se tivesse que dizer algo sobre A Saga de Eternidade, diria que este é um dos pilares do Universo Marvel, como o conhecemos hoje, sendo uma leitura obrigatória não só para os fãs do Dr. Estranho, mas também para todos aqueles que apreciam uma boa narrativa de aventura. E, para os curiosos de entender um pouco mais sobre como a editora veio a se tornar A Casa das Ideias como a conhecemos hoje, a Saga é também uma história fundamental, sendo talvez, como argumentado pelo Marco M. Lupoi em sua introdução à história no volume publicado pela Salvat, a primeira graphic novel da Marvel.

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P.S: Para aqueles curiosos para conferir A Saga de Eternidade, a mesma foi publicada Salvat no ano passado, na terceira edição da sua série dedicada aos Clássicos, sob o título "Dr. Estranho: Uma Terra Sem Nome, Um Tempo Sem Fim". No geral, é uma bela edição, ainda que apresente, aqui e ali, alguns pequenos problemas de diagramação e um ou outro errinho besta de português.
Referências:
CBR - Ditko's Doctor Strange was psychedelic before psychedelic was a thing (em inglês)
CBR - Marvel Cosmic: The Greatest Space Epics (em inglês)
Wikipedia - The Monster Society of Evil (em inglês)



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