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  • Lucas Freitas

Shigeru Mizuki e a influência dos quadrinhos de terror norte-americanos

Hoje, trago a tradução de um belo ensaio do Zack Davisson sobre a influência dos quadrinhos de terror norte-americanos na obra de Shigeru Mizuki (1922-2015)


Shigeru Mizuki ao lado de uma estátua de Kitarou

O texto de hoje vai ser algo meio diferente. Mas tenho certeza de que você vai gostar.


Pois bem, creio que não seja preciso dizer que, desde a leitura de Nonnonba (que inclusive tem resenha aqui na Galeria) fiquei apaixonado pelo trabalho de Shigeru Mizuki (1922-2015), o mangaká responsável pela popularização - e resgate - dos youkais.


Como sempre faço quando encontro um novo interesse, mergulho em uma espiral de pesquisa e, enquanto reunia material para minha resenha de Nonnonba, me deparei com o site do Zack Davisson o Hyakumonogatari Kaidankai, um site dedicado a apresentar e discutir a temática do sobrenatural no folclore japonês, e foi assim que me deparei com o seguinte ensaio que busca analisar a influência dos quadrinhos de terror norte-americanos na obra do criador de Gegege no Kitarou.


Particularmente, adorei o ensaio de Davisson e, como acredito que tanto seu trabalho quanto o de Mizuki merecem um reconhecimento bem maior do que o que tem atualmente, decidi traduzir para o português o artigo que se segue - com a devida autorização do autor - e que você pode ler na íntegra abaixo.


Boa leitura!


  • Shigeru Mizuki e os Quadrinhos de Terror Norte-Americanos:


Por: Zack Davisson

Tradução: Lucas Freitas

Publicado pela primeira vez em: 28/01/2014


Comparação Kitarou e Quadrinhos clássicos

Quando pensamos nas influências do mangaká Shigeru Mizuki, com certeza não são nomes como Basil Wolverton, Bob Powell ou Warren Kremmer os primeiros que nos veem em mente. Afinal, esses são artistas que trabalharam nos Estados Unidos nos anos de 1950 em títulos como Tomb of Terror e Crypt of Horror. Assim, parece pouco provável que pudessem servir de referência para um jovem situado do outro lado do oceano. Ora, como esse jovem poderia encontrar os trabalhos desses artistas? E, mesmo se pudesse encontrá-los, como poderia lê-los?


Ainda assim, a influência é bem óbvia. Os trabalhos iniciais de Shigeru Mizuki possuem aquelas mesmas sombras pesadas, os mesmos traços e poses dramáticas. Isso é particularmente verdadeiro no caso do mangá Hakuba Kitarou (Kitarou do Cemitério), a versão mais sombria e sinistra de seu famoso personagem, Kitarou, antes que a obra fosse suavizada a pedido de seu editor para ser mais apropriada para crianças. A história de abertura da série - intitulada Kitarou no Tanjoubi, ou O Aniversário de Kitarou - tem o mesmo visual e tom de um quadrinho da EC Comics da década de 1950. De fato, se não fossem pelos caracteres japoneses e por algum dos rostos ali presentes, Kitarou no Tanjoubi poderia facilmente ter saído de uma edição de Contos da Cripta ou da Vault of Horrors.


Mizuki nunca fez questão de esconder suas influências. Leitor voraz, era fascinado pelos autores e filósofos norte-americanos e europeus, tendo inclusive pego emprestado muita coisa de suas obras para seus mangás. Um exemplo disso é a adaptação de autores obscuros de terror como W.F.Harvey, cujo conto de 1928 The Beast with Five Finger se transformou na aventura The Hand, do seu Kitarou ( Como você pode ver no artigo Kitarou and the Beast with Five Fingers.)


Em Showa: Uma História do Japão, sua auto-biografia/reconstrução histórica, Mizuki mostra como os quadrinhos norte-americanos chegaram até ele. No período do pós-guerra, seu pai tinha um cargo no governo de ocupação dos EUA no país. Dominando o inglês, o pai de Mizuki chegou a trabalhar como professor do idioma, o que o tornou uma peça fundamental para os diálogos entre os japoneses e os soldados estrangeiros. Ciente de que seu filho estava lutando para se manter no mercado kashihon* de mangás após o fim de sua carreira no kamishibai, ele pegou vários quadrinhos deixados pelas tropas e civis norte-americanos que atuavam no governo provisório, e os deu para que seu filho pudesse usá-los como base e inspiração para suas produções.


É bem óbvio qual quadrinho norte-americano inspirou aquele que foi o primeiro sucesso de Shigeru Mizuki no mercado de mangás. Por mais que chamasse sua criação de Rocketman, o mangaká não fez nada para esconder a origem do personagem - nem sequer se preocupando em mudar o famoso emblema em "S" no peito para um "R" - o que teria sido mais apropriado para seu Rocketman. Mas, por mais que Mizuki tenha pego a aparência física do Superman para seu mangá, o modo como decidiu ilustrar e contar sua história era genuinamente seu. De fato, é quase como se ele estivesse imitando os desenhos do Popeye dos Irmãos Fleisher no lugar do Homem de Aço, como mostra o painel onde Rocketman flexiona seus músculos no formato de uma nuvem de cogumelo para demonstrar sua força.


O Rocketman de Shigeru Mizuki

Então a influência sempre esteve ali. Mas foi só quando a Fantagraphics publicou o volume Four Color Fear: Forgotten Horror Comics of the 1950s que ficou claro o quanto de influência realmente existia. ( Ou, mais especificamente, só quando um exemplar do livro em questão chegou nas mãos de Natsume Fusanosuke, autor do blog que inspirou este post.)


Na clássica tradição dos artistas de quadrinhos, parece que Shigeru Mizuki também tinha seu próprio "arquivo de referências" de poses e personagens vindos diretamente das obras de quadrinistas norte-americanos.


Comparação de arte entre Shigeru Mizuki e quadrinho norte-americano


As imagens à esquerda foram retiradas do kashihon mangá Youkaiden (1959), de Shigeru Mizuki, e é inegável que o artista se utilizou de várias poses - e expressões faciais - vindas diretamente do quadrinho Amnesia (1953), de Warren Kremer. De fato, as poses em si são idênticas, ainda que estejam sendo utilizados para propósitos narrativos diferentes.


As influências de Shigeru Mizuki na EC Comics

A maior surpresa - e o maior momento de "ah ha!" - vem quando observamos o pai de Kitarou. A múmia que aparece aqui é o pai do protagonista, antes de se liquefazer e assumir a forma do Medama Oyaji que todos conhecemos e amamos. Particularmente, eu sempre achei esse uma escolha de design bem estranha por parte do Mizuki. Afinal, múmias não são tão populares no folclore, ou no horror japonês, e nunca fez muito sentido para mim que o autor tenha utilizando uma múmia decrépita para representar o último dos Yurei Zoku, a Tribo Fantasma, que um dia já reinarem sobre nosso mundo.


Comparação entre Shigeru Mizuki e Bob Powell

Mas, quando vamos ver o quadrinho Servants of the Tomb (1951) de Bob Powell, nós logo conseguimos ver a origem da inspiração para o pai de Kitarou. Apesar desse não ser uma cópia direta como nos outros casos, fica mais do que óbvio que Shigeru Mizuki viu este quadrinho e gostou bastante do monstro para utilizá-lo como base para o pai de Kitarou em sua forma "completa". Agora, depois de tanto tempo, finalmente essa escolha fez sentido para mim.


Mas Bob Powell e Warren Kremmer estavam em boa companhia, uma vez que Shigeru Mizuki também colecionava reproduções de arte de artistas europeus clássicos como Albrecht Dürer e as usava como inspiração. Eu mesmo já vi vários posts onde o próprio Mizuki mostra a arte original e, em seguida, apresenta a sua versão. Ele também copia o trabalho de grandes mestres japoneses como Toriyama Sekein e Katsushika Hokusai em suas enciclopédias sobre youkais, além de se valer de fotografias famosas e outras obras de arte históricas para situar sua série Showa: Uma História do Japão.


E como Natsume menciona no seu artigo, provavelmente existem bem mais cópias a serem descobertas por quem tiver paciência e os recursos necessários para tanto. Não só isso, ele vai além e especula que, se as tropas norte-americanas levaram os quadrinhos com eles para o Japão e inspiraram um jovem Shigeru Mizuki, talvez eles também tenham causado um efeito semelhante na Europa e influenciado um jovem que se tornaria o artista que hoje conhecemos como Moebius.


Quem sabe? A verdade é que a arte dos quadrinhos norte-americanos chegou longe, da mesma forma que as tropas estadunidenses serviram como Johnny Appleseeds** involuntários à medida em que foram deixando para trás pedaços de seus hábitos, costumes e cultura pop, estes, por sua vez, foram absorvidos e assimilados em um novo formato, se transformando em uma base fundamental da cultura japonesa.


*******

Ainda que o artigo termine ali, é preciso fazer algumas observações a respeito do mesmo: *kashihon - nome dado aos livros e mangás que eram alugados no Japão. Parecido com nossas antigas locadoras de filmes ou de jogos. Deixaram de existir à medida em que o mercado editorial foi se solidificando e se tornando mais apto a suprir a demanda do público - e em preços acessíveis.


**Johnny Apleseed - Nascido Johnathan Chapman, Johnny Aplessed (1774-1845) foi um pioneiro norte-americano conhecido pela disseminação da plantação de maçãs em várias partes do território dos EUA. Por sua natureza pacífica e gentil, virou uma figura folclórica ainda em vida.


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E esse foi o post de hoje. Sendo bem sincero, adorei ter descoberto esse site ter a oportunidade de ler os artigos do Davisson, tanto é que foi um prazer traduzi-lo para o português.


Sem falar que qualquer oportunidade para falar do Shigeru Mizuki é motivo de comemoração para mim = )


Espero que tenha gostado, e até a próxima!



 

Referências e Materiais Complementares: Bem, como já é costume por aqui, vou deixar aqui as referências que me ajudaram na hora de traduzir o artigo - assim como alguns materiais complementares ; )


Hyakumonogatari Kaidankai - Site de Zack Davisson

Mizuki Shigeru and America Horror Comics (artigo original)

Resenha - Nonnonba, de Shigeru Mizuki

Kitaro and the Beast with Five Fingers

Artigo original de Natsume Fusanosuke (em japonês)

Kashi-hon - Verbete

Amnesia, de Warren Kremer (quadrinho em inglês)

Warren Kremer (biografia em inglês)

Bob Powell (biografia em inglês - verbete Wikipedia)

Albrecht Dürer - Referências de arte

Toriyama Sekien - Verbet Wikipedia

Katsushika Hokusai - Referências de arte

Johnny Appleseed - Verbete Wikipedia (em inglês)


 

E se você ficou curioso para conhecer mais dos trabalhos de Shigeru Mizuki, ou sobre os trabalhos que o inspiraram, separei aqui uma seleção de links da Amazon que podem te ajudar a se aprofundar melhor nos temas deste artigo.


Lembrando que, ao comprar por estes links, você está dando uma grande força para o site, e permitindo que mais matérias como essa possam ser feitas!


Showa: Uma História do Japão Vol.1 de Shigeru Mizuki

Nonnonba de Shigeru Mizuki

Marcha Para a Morte de Shigeru Mizuki

Hitler de Shigeru Mizuki

Four Color Fear n.1 (of 4): Forgotten Horror Comics of the 1950s (em inglês - Kindle):

O que Havia na Caixa de Sam Dora? E Outras Histórias


 







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